terça-feira, 24 de março de 2015

MAYRTON BAHIA: A MARCA DE UM PRODUTOR

Entrevista exclusiva do blog Torres de Som com um dos maiores produtores do Brasil

Por Gustavo Torres

  Mayrton Bahia é considerado por muitos um mago da produção no país. Além de produzir os principais  álbuns da Legião Urbana, seis no total, trabalhou no último álbum de estúdio de Elis Regina, em 1980, com os Engenheiros do Havaí, Maria Bethânia, Djavan, Wagner Tiso, com a  dupla sertaneja Chitãozinho e Xororó, além de ter lançado praticamente diversos nomes , como por exemplo, Cássia Eller e a dupla Sandy e Junior. Tamanha  veia  eclética o fez um produtor respeitado no meio artístico ao ponto de criar o curso de Produção Fonográfica na faculdade Estácio de Sá, no Rio, em 1999, no qual continua lecionando até hoje.
  O blog Torres de Som fez uma entrevista com essa personalidade que tem muitas histórias para contar e continua repassando seus ensinamentos para alunos que buscam a verdadeira essência musical: produzir com qualidade artistas que cantam com a alma e que respeitam a música.


Você já trabalhou com os mais variados estilos musicais, nessa  longa e bem-sucedida trajetória o que hoje você  mais aconselha a quem está começando a produzir: trabalhar com dedicação, por etapas, ou visar mais no retorno do produto?

    O retorno sempre veio quando eu apostei no que acreditava e o que o artista acreditava, trabalhei com vários estilos diferentes e o que um João Gilberto, uma Legião Urbana ou a dupla Chitãozinho e Chororó têm em comum? Eles tocam e  fazem aquilo que acreditam. O meu toque de produção vem justamente para potencializar aquilo que os artistas acreditam, é isso que eu foco para passar aos alunos no curso: serem pessoas que mostram nas letras ou na música, o que elas são. Hoje em dia todo mundo quer o sucesso, ser famoso muito rápido e para sustentar um sucesso, é muito difícil. A questão é que nem sempre o sucesso vem rápido. Difícil é cantar o que você sente e convencer outra pessoa que você é aquilo que está no palco. Isso pode demorar seis, cinco às vezes, 10 anos. A sua expressão através da música é que sustenta um consolidado sucesso, porque aí você não está objetivando o sucesso, mas sim sendo sincero com seus sentimentos independentemente se o mercado queria ou não. Com a Cássia Eller foi assim, eu a descobri através de uma fita demo que ela me deu e achava intrigante ouvir que ela cantava compositores da vanguarda paulista: Arrigo Barnabé, Premeditando o Breque, Itamar Assumpção. E no meio dessa gente toda, tinha uma música da Legião, "Por Enquanto". Todo esse repertório ela usava a pegada rock, ela recriava tudo que ela juntava e eu fiquei me perguntando: 'como é que uma pessoa se apropriou disso ou daquilo?' E na canção da Legião, "Por Enquanto", eu percebi tanta força naquela interpretação que tentamos gravar no estúdio e não deu certo, deixei o estúdio de lado e lancei a versão demo. 


Se estivesse viva, Elis Regina, completaria esse ano, 70 anos. Como você foi o produtor executivo do último álbum de estúdio da cantora, em 1980, o que mais você guarda de especial quando esteve com ela no estúdio?
    Quando eu estive com ela no estúdio eu comecei a aprender a trabalhar. Eu escolhia o repertório ao lado dela. Ela tinha um saco repleto de fitas cassetes onde ela ouvia os compositores(as) novos(as),  tanto que ela acabou lançando um monte de compositores no Brasil. Ela dizia que tentava gravar determinadas músicas há vários anos, mas dizia que não sabia o que fazer com elas, Elis tinha essa humildade, "não sei o que fazer com essa música"! Depois disso, eu a vi pegando uma música simples, e tranquilamente, sentada na casa dela, começava a cantar determinada canção que se transformava em uma coisa de outra dimensão. Ao mesmo tempo que ela era muito impositiva era também uma pessoa que ouvia o que os outros tinham pra dizer. Teve um momento em que ela pegou várias musicas na casa dela, na Cantareira, gravamos várias demos no estúdio, e ela, relaxada, com o pé em cima da mesa, começou a colocar a voz que veio com uma elaboração que achei estranha, e os músicos, por sua vez, adorando e tal. Nessa hora eu achei que aquilo não soava bem, mas também não ia no começo da minha carreira, (Mayrton tinha 25 anos na época) cobrar de qualquer jeito de uma Elis Regina com um tom autoritário, dizendo que aquilo não tava legal então eu procurei esperar passar aquele momento de euforia. Daí ela veio cobrar de mim o porquê de eu não estar gostando. Fiquei quieto, ela voltou a gravar umas seis ou sete músicas com a banda, parou e me disse: "por quê você não está gostando de nada?"(risos). No dia seguinte, ela não deixou ninguém entrar no estúdio e gravou o álbum todo de novo. Fiz questão de dizer nessa hora que ela era fantástica e que eu percebi que ela poderia tentar fazer melhor.Ela regravou umas três músicas e me disse: "agora, você se vira!" (risos). A partir daí, percebi que ela queria trabalhar com uma pessoa verdadeira e que não queria gracejos com ela, mas obviamente eu sabia que teria de ter o tempo certo para falar com uma estrela, que no caso, era a Elis.


Na recém-lançada biografia da cantora, “Elis Regina: Nada Será Como Antes”, do escritor Julio Maria da Folha de São Paulo, qual outra história da cantora você acrescentaria?

Tem uma história interessante da Elis sim, eu reparava que quando ela ficava irritada, ela começava a ficar estrábica de um olho só. Quando tinha muitas pessoas dentro do estúdio, conversando, atrapalhando de certa forma o isolamento criativo da artista, ela começava a ficar estrábica (de nervoso), e eu já sabendo do 'agravante' entrava e trocava de assunto, ajudando-a de alguma forma (risos). 


Você além de produtor se tornou um amigo dela?
Com certeza, mas tem que ser assim, aprendi essas coisas com o César Camargo, excelente artista a quem eu tinha produzido seu álbum antes mesmo do último da Elis, esposa dele na época. Ele fazia tudo para ela: arranjo, etcs.

     
Em diversas entrevistas você diz que é a favor dos  tempos atuais onde qualquer um pode produzir, mixar e tocar com ferramentas tecnológicas (softwares). A grande diferença que ainda permanece é a qualidade de produzir. O que você costuma dizer aos seus alunos sobre isso?

Que o som está à serviço da identidade. A questão não é a tecnologia, mas sim a identidade. Como tem muita gente que tá fazendo a mesma coisa, eu digo mais do que nunca que tá faltando a identidade e que você precisa convencer a outra pessoa que você é aquilo que você está se expressando artisticamente. No início é a questão da credibilidade, com o tempo, se transforma em identidade.E a partir daí, você pode utilizar qualquer instrumento, qualquer ferramenta para prosseguir com sua carreira. Hermeto Pascoal, por exemplo, toca tupperware e faz sucesso.A identidade que é o ponto fundamental. Se você vê uma Ivete Sangalo ou uma Daniela Mercury em cima do trio elétrico, ok, elas são dessa linha artística, mas se você coloca um Chico Buarque em cima desse trio elétrico, a estranheza vai ser latente, a identidade está aí, ela tem de ser preservada.


Você ainda percebe dificuldades em produtores veteranos ao tentarem se habituar na usabilidade de ferramentas modernas de produção?
  Com certeza tem e são vários, não só produtores, mas técnicos de sons também, músicos. Tem gente que diz que DJ não é músico e daí eu costumo responder: 'se o DJ não é, o Hermeto também não é'. Tudo depende de como você usa aquilo.


 Você ainda tem lembranças marcantes na época de produção dos principais  álbuns da Legião Urbana? Como era a sua interação como produtor de um artista que viria a se tornar um ícone de uma geração, o Renato Russo?
   Eu comecei a trabalhar com o Renato Russo e banda quando ele ainda não era ícone, então o Renato sempre foi uma pessoa muito direta comigo, sabia sempre o que queria na hora de gravar, acreditava nas coisas que fazia, sempre foi assim. Mesmo depois que a Legião Urbana começou a tomar proporções gigantescas pelo país o tratamento continuou sendo o mesmo. Quando falo em entrevistas sobre a polêmica do uso do nome da banda (Giuliano Manfredini, filho de Renato Russo, tem por lei a propriedade do nome, a marca 'Legião Urbana' atrelada em uma empresa de Giuliano revoltando os demais músicos da Legião, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá. Giuliano por sua vez, diz que isso nunca tinha sido contestado antes, pois o pai era o dono do nome da banda), afirmo que o Renato ouvia muito o Dado, ouvia muito o Bonfá e não tomava decisões que não contrariasse os demais integrantes, ele sempre pensava na opinião de todos da banda. E isso pra mim, foi a prova da identidade de um grupo que chegou aonde chegou.



Além de Elis, você trabalhou com grandes nomes da MPB, como Djavan, Wagner Tiso e Maria Bethânia. Quais nomes na atualidade você atesta qualidade na visão de produtor?
   Na atualidade, cito o Lenine, Mallu Magalhães, principalmente como compositora e a concepção artística dela, só acho que a velocidade das cobranças que as pessoas fazem nesse tipo de artista para serem posicionadas na mídia, atrapalha. Então no caso da Mallu, acho que é o importante é o cuidado na produção, na orientação. Mas eu acho ela uma menina com uma capacidade artística muito grande.
Existem também na minha visão, grandes talentos em reallity-shows que não são tão bem aproveitados, e penso que se tivesse hoje em dia um selo em qualquer gravadora, abriria espaço na hora pro trabalho dessas pessoas.


Você saiu da EMI e lançou um selo independente voltado para nomes  desconhecidos do grande público em 1993, o Radical Records. O que essa mudança de percurso representa hoje para você em uma era de polarização do underground graças à Internet? 

Foi a partir deste selo que eu continuei o que eu já sabia fazer indo pro meio acadêmico, para as pessoas investirem naquilo que elas são.Por isso o nome 'Radical Records', que tinha um viés de juntar bandas que as grandes gravadoras jamais queriam ter, eu fui pela contramão. Mas excelentes artistas que surgiram no meu selo quando tiveram um mínimo de ascensão no mercado, procuravam imediatamente as grandes gravadoras, querendo ser iguais aos outros, procurando fama e sucesso. Então eu concluí que para eu poder passar essa mensagem de ser você na música era necessário lecionar. Li uma matéria há pouco dizendo sobre o poder da propaganda nos dias atuais que me fez lembrar na propaganda das décadas passadas onde se lia a qualidade do produto como poder comercial. O pensamento de hoje de certa forma é achar que mudando a narrativa, muda-se a realidade, mudando assim as pessoas como elas são. Então por isso cito que estou indo na contramão: primeiro é necessário saber quem você é artisticamente para depois você se sociabilizar e mostrar qual a sua forma de expressão, diferente do momento atual de estandardização, com todos com o mesmo discurso, colocando todo mundo no mundo do marketing. Todo mundo se beneficia nessa farsa achando que mudando o discurso, muda o conteúdo. Então eu percebi isso no selo, aquele cara que queria andar na 'contramão', na verdade, queria tá é na 'mão'. A Cássia Eller morreu disso, enquanto ela era abraçada pelo mainstream ao mesmo tempo ela teve dificuldade de resistir e manter o que ela era. A Radical Records foi importante  para saber que eu precisava muito mais trabalhar produzindo produtores do que continuar produzindo.


Capas de alguns álbuns marcantes produzidos por Mayrton Bahia:


Último álbum de estúdio de Elis Regina  (1980), a versão de "Trem Azul" do Clube da Esquina foi o destaque



O primeiro álbum da Legião Urbana  (1985). Mayrton produziria ainda mais cinco de estúdio da banda



"Seduzir", um dos clássicos de Djavan  (1981), a faixa-título e "A Ilha" são destaques nesse álbum



Mayrton não produziu o primeiro álbum de Cássia Eller (1990), mas foi o fio condutor para o lançamento da artista graças a uma fita demo deste álbum entregue pela própria nas mãos do produtor ainda na EMI-Odeon 


Mayrton Bahia na faculdade Estácio de Sá, no Rio: seu lema é:  "produzir produtores"

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